Sob o barro, ainda lembro dos demônios, por Guilherme Reis
Veio o frio.
Mas não era o frio que mais doía.
Era o som das botas — pesadas, secas,
como quem marcha não com pés,
mas com ódio nas solas.
Eles vieram —
soldados negros por dentro,
sem alma,
com olhos ocos e dentes cerrados,
caçando tudo que não fosse
cópia da própria sombra.
Trazendo bandeiras como pragas,
e uma sede:
não de terra,
mas de apagar rostos,
calar nomes,
fazer do mundo um só molde,
um só fardo,
uma só cor.
Eles não só queimaram lares —
arrancaram mães de filhos,
filhos de mães,
como quem colhe espinhos com gosto,
rindo da dor que causam.
Os trilhos levavam gente,
mas voltavam vazios.
O silêncio dos que iam
gritava mais alto que os canhões.
Braços pequenos empurrando pedra,
costas feridas sob chicotes,
olhos secos, sem infância,
fazendo de cada dia uma prova
de que o inferno respira entre nós.
E os que não serviam,
os que não se encaixavam,
os que ousavam apenas ser —
viraram ratos de laboratório,
carne aberta sem anestesia,
dor medida, anotada, esquecida
em cadernos frios.
O mundo assistiu calado,
enquanto monstros de uniforme
brincavam de Deus
com seringas e números.
Mas nós,
aqui, entre o pó e a fumaça,
brotamos de pedra e fogo.
Não tínhamos mais paredes,
mas tínhamos espinha.
Com punhos fechados e corações nus,
erguemos garrafas, facas,
e o que sobrou das casas.
E quando um daqueles vultos caía,
o chão agradecia com silêncio.
Pisávamos seus corpos como se esmagássemos
a doença que os pariu.
Não era guerra —
era exorcismo.
Eles queimaram tudo —
mas não souberam que o espírito
arde mais forte quando ferido.
E ali, onde o barro engoliu demônios,
ficamos de pé.
Por eles —
os que nunca puderam lutar,
os que viraram cinza sem saber o porquê,
os que morreram em nome do nada.
O barro ainda guarda seus gritos.
E eu os carrego comigo.
Não por ódio —
mas por memória.
Porque esquecer seria matá-los outra vez.
E disso, eu juro,
sou incapaz.
Este texto foi escrito por Guilherme Reis, um autor itapirense que gosta de explorar temas variados em sua escrita, desde o amor até a ficção científica, sempre com um toque criativo e reflexivo.
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